10 de novembro de 2015

Noite insone

Encosta a cabeça no travesseiro. Por alguns minutos, sente que pode entregar-se ao mundo dos sonhos. Sente o cansaço, sente a leve pontada da enxaqueca ali, na têmpora direita. Acordou antes do sol nascer, e espera que conseguirá o merecido descanso essa noite.
O travesseiro fica quente. O ventilador não alivia o suficiente. A luz da lua que penetra no recinto, mesmo com as venezianas fechadas, incomoda. O colchão está torto, não encontra posição pra dormir, os pensamentos correm soltos pela noite. O dia passa por detrás dos olhos, as preocupações de outrora passeiam pelos devaneios. Devaneios, viagens, frases, músicas, imagens, pessoas, momentos.
Passam-se duas horas. Desiste, vai ler um livro. Tem de sair de casa a menos de cinco horas dali.
O dia será difícil amanhã.

21 de outubro de 2015

No olho do furacão

Por vezes, eu não encontro as palavras certas - ou mesmo quaisquer palavras - para expressar o que se passa dentro de mim. Da minha cabeça, do meu coração, do meu ser. É um misto estranho de cansaço, de frustração e de impotência, ao mesmo tempo que sou levada - por mim mesma - a agir como onipotente, como dona de mim e do mundo ao meu redor. Como se todos os meus problemas fossem única e exclusivamente minha responsabilidade, mas ao mesmo tempo não tenho mecanismos para resolvê-los.
Não tenho?
Tenho sim. Me falta é a vontade. Algo que me movimente, que me motive. Talvez até existam motivações, na verdade. Existem as necessidades do mundo que eu preciso dar conta - preciso? Não sei. Mas elas estão aí, e eu sinto que preciso dar conta. Preciso dar conta do mundo, mas não dou conta de mim. Se não eu, quem dá conta de mim?
É um misto de precisar ser autossuficiente e, ainda assim, precisar de cuidado, carinho e atenção. Como um bebê que precisa dos cuidados da mãe e, se abandonado, não sobreviverá. Contudo, eu já não sou esse bebê. Eu me alimento sozinha, me troco, me cuido, dou conta das minhas necessidades. Mas, ao mesmo tempo, é como ser um bebê autossuficiente: eu dou conta das necessidades, mas vez ou outra vem essa sensação de que eu não deveria dar.
Eu não sei o que eu preciso, e essa busca incerta, esse caminho torto, esse breu onde nada se vê, é o que me apavora. Como chegar, sem saber onde ir? Onde é esse "onde"? E porque eu deveria "chegar" lá? E se "lá" na verdade for "aqui"?
Eu não dou conta.

9 de outubro de 2015

Programa de gente chata

O meu café não estava descendo amargo não, embora a situação estivesse amarga. Já fazia um tempo que não dávamos mais bom-dia uma pra outra, que o ambiente ficava silencioso quando o ocupávamos ao mesmo tempo e que eu recebia umas respostas meio atravessadas, em vez de diretas. Mas não me incomodava muito. Quer dizer, é claro, vinha aquela vontade de virar a mão num tapa e alguns palavrões, vez ou outra, subiam até a garganta. Mas eu não achava que fazia tanto sentido - tantas pessoas vem e vão nessa vida, será que eu preciso sair do meu caminho pra sacudir alguém que não quer andar por ele comigo?
Além disso, eu tenho certa experiência de vida. Não aquela sabedoria ancestral, que algumas pessoas desenvolvem depois de ver e passar por muita coisa, mas eu conheci uma quantidade considerável de gente até agora, na minha breve vida. Eu sei que as pessoas às vezes não ficam pra sempre - a diferença está em como elas decidem ir embora. Algumas só vão. Outras acabam indo quase sem querer. E tem essas tipo essa garota, que precisam fazer toda uma encenação digna de ópera antes de partirem. E a gente tem essas escolhas, de atuar junto, ficar assistindo ou, sei lá, mudar de canal - afinal, sou da geração que só assiste ópera se for pela TV a cabo.
A vida é assim, feita de escolhas. E quem manda no controle remoto é você. Então se você não tá curtindo o programa, mude de canal, ora essa. Sofrer por opção é coisa de gente masoquista, e eu estou pendendo bem mais pro lado sádico da vida.

23 de setembro de 2015

E se?

Hoje procurei seu nome. Mais uma vez, não obtive nenhuma resposta - você nunca deixou rastros de qualquer maneira. Me perguntei, então, por que vez ou outra eu procuro por você, na imensidade desse mundo. É difícil esquecer-se de um rosto que nunca se viu, de uma voz que nunca se ouviu, de um amor que nunca se concretizou, porque eternamente me pergunto: e se? 
Facilmente vejo a mim mesma sentada na varanda, em uma cadeira de balanço, lendo um livro que talvez não queira verdadeiramente ler e, ao olhar para o horizonte, me lembrarei de você. E pensarei: e se? E se tivesse sido diferente, e se tivéssemos tentado, e se na verdade você nunca existiu de fato e tudo não passou de um sonho meio lúcido, fantasioso?
E se eu conseguisse te esquecer totalmente, de uma vez por todas?

15 de agosto de 2015

Vestígio II

O sol se punha, a uma leve brisa dançava por entre as folhas da árvore na qual se recostavam. Ali, os dias terminavam assim, calmos, serenos, tranquilos. Ela podia sentir o peso e o calor da cabeça deitada em se ombro - embora o calor parecesse estender-se ao se peito e às maçãs do rosto. Podia quase ouvir a respiração pesada, e uma certa dor incomoda nas costas, mas mais do que tudo, podia senti-lo ali, ao seu lado. Sabia que uma dama não deveria ser egoísta, e que deveria conter seus desejos impertinentes, mas queria que tais momentos perdurassem. Ansiava pelo pôr-do-sol todos os dias, fingindo ler um romance qualquer, e podia sentir o coração explodir dentro do peito ao vê-lo caminhando em sua direção, com um riso sem jeito. Fazia cara de desinteresse, "Uma dama não pode aproveitar a brisa enquanto lê?", e sentia borboletas no estômago ao ouvi-lo rir. "Sim, ela pode. E poderia este cavalheiro desfrutar de sua companhia?"
Não se conteve, e permitiu-se brincar com as madeixas escuras entre seus dedos finos, fascinada com o contraste entre os fios negros e sua pele alva. Permitiu-se beijar-lhe, no topo da cabeça, e voltou sua atenção ao céu, pedindo que o vento esfriasse o calor de suas bochechas. Se fosse mais atenta, perceberia não ser a única com as faces avermelhadas, mas estava muito perdida nas próprias fantasias para notar que o homem a seu lado compartilhava do mesmíssimo desejo.

14 de agosto de 2015

Vestígio I

Ela correu por entre os galhos, segurando o vestido entre uma das mãos. A barra longa de linho já vira dias melhores, mas ela não se preocupava com isso agora. Vez ou outra, parava por alguns segundos para tomar ar e olhar as estrelas, orientando seu caminho. Ao olhar para trás, ainda podia ver as chamas dançando no céu, a fumaça negra se estendendo entre as nuvens. Em outras circunstâncias, deixar-se-ia levar pelas lembranças da suntuosa mansão, dos dias de calmaria, dos risinhos entre os corredores e cantos - agora, contudo, precisava escapar. Precisava viver para cumprir a vingança.
Eles pagariam. Por cada gota de sangue derramado, por cada flor pisoteada no jardim, por casa choro abafado entre as pequenas mãozinhas, acuadas entre os cantos e corredores. Por cada sopro de vida ali tomado, por cada último suspiro. Por cada pedaço de linho queimado pelas chamas de tal tragédia. Eles pagariam. Ainda que tivesse de sujar as próprias mãos com o vermelho rubro de cada um daqueles monstros em pele de homem.
Tomou o ar e seguiu em frente, por entre os arbustos e galhos. Cruzou o rio sem medo, ainda que a água fria queimasse sua pele. Certificou-se uma ou duas vezes que sua adaga permanecia entre as camadas de tecido do vestido e seguiu seu caminho. Eles pagariam. Ela os faria pagar.

7 de junho de 2015

O gosto amargo da vitória

Olhou ao seu redor. Cadáveres jaziam amontoados pelo chão, o aroma de sangue misturava-se ao da pólvora. Qualquer um que por ali passasse, reconheceria o cenário de uma guerra, de uma batalha de vida e morte - o cenário de um câncer que se instala e se alastra pela sociedade por séculos. E ali estava ele, examinando o que outrora fora um campo de batalha feroz, onde homens de diferentes idades, terras natais e famílias deram seu suor, sangue e vida em busca da vitória. Aos olhos de outrem ele era o vitorioso, segurando imponente a bandeira de sua pátria, carregando nos ombros a honra e a força de seus companheiros.
Mas se pudesse olhar um espelho, o que veria seria apenas a pobre realidade: um homem ferido, que permanecera de pé às custas das pernas de seus semelhantes, amigos, parentes, vizinhos, compatriotas. Venceram. Acabava ali, naquele instante, um pesadelo dantes tido como interminável. Às custas das vidas de pais, irmãos, amantes, jovens que teriam em frente toda uma vida a ser vivida.
A vitória trazia-lhe um ilustre sabor amargo...

3 de junho de 2015

Desamparos

Há 10 anos atrás minha vida foi virada de ponta cabeça e do avesso, e como a criança que eu era, nada pude fazer além de ser levada pela correnteza dos acontecimentos. Já com a pouca idade eu aprendi a minha primeira lição da "vida lá fora": não dependa dos outros, porque eles não vão estar lá pra você. Afinal, no fim das contas nós nascemos e morremos sozinhos.
Hoje, 10 anos mais tarde, num dia qualquer, sem nenhum acontecimento especial, eu me dei conta do total abandono no qual eu tenho vivido. Eu não sou independente porque sou desapegada, sou independente porque nunca tive de quem depender. Não sou madura porque tive uma grande experiência de vida, e sim porque não me permitiram ser criança. Eu sou uma sobrevivente. Um exemplo de pessoa que contornou sozinha todos os seus obstáculos, inclusive aqueles que deveriam servir como porto seguro.
Sinto-me desolada. O meu porto seguro é o obstáculo do qual eu tive de desviar todos estes anos. O objeto de amor e conforto é a parede com a qual eu precisei - e ainda preciso - bater de frente pra seguir o meu caminho. Não me surpreende que eu me sinta tão abandonada. No fundo, a única pessoa com a qual eu posso verdadeiramente contar sou eu mesma - e me pergunto se eu não me abandonaria também, se tivesse a oportunidade. Não dependemos de ninguém, porque ninguém estará ali para nós. 
Você nasce sozinho e morre sozinho.

23 de abril de 2015

Transitando


Nós costumávamos jogar conversa fora a essa hora. Nos divertíamos falando de qualquer coisa - fossem as pessoas, os livros, o dia-a-dia, as piadinhas mais bobas possíveis. Sua presença em minha vida era constante, e parecia-me que sempre seria assim. Nós fazíamos promessas juntos, planos para o nosso futuro, brincávamos sobre como seria nossa relação em dez anos, e isso parecia muito sólido pra mim. Àquela altura, você parecia certo em minha vida, e ali estaria por toda a eternidade.
Pensando nisso agora, eu me sinto tola. Claro que eu notei que já não vínhamos nos falando com frequência, mas pensei: "faz parte da vida". Nosso dia-a-dia era sempre uma correria, você por aí, eu por aqui, e eu não seria mimada ao ponto de achar isso um problema. Éramos adultos agora, tínhamos responsabilidades e obrigações com as quais cumprir. Ainda assim, eu gostava de pensar que você estaria sempre ali. Distante, mas ali, em algum lugar para o qual eu pudesse correr quando precisasse.
Um dia, eu percebi que você já não estava mais em lugar algum. E eu não fazia ideia de para onde tinha ido. Mais do que isso, eu sequer tinha notado a sua partida. Não chorei sua ausência. Não percebi sua falta. Não liguei. 
As pessoas são assim, elas vêm e vão. Às vezes é doloroso, às vezes não.

1 de abril de 2015

Pensamentos Auto-destrutivos


Às vezes eu quero morrer. Pular da ponte que não existe nessa cidade, jogar uma cartela de diazepan num copo de vodka, cortar os pulsos ao som de Back to Black. Dirigir a 300 por hora em direção ao abismo, dar um tiro na boca, caminhar sem rumo pela estrada enquanto meu corpo aguentar. Às vezes eu tenho essa sensação de que o mundo é demais pra mim, que não existe saída, e fico querendo sumir sem deixar rastros. Se for deixar algo, que fiquem as memórias então.
Mas este é só mais um dia ruim, que começou, mas não acabou bem. É só mais um momento de recaída, de uma reação em cadeia, de uma relação de coisas que trouxeram um produto ruim. Outros dias virão. A vida é mais do que pedras no caminho.

27 de fevereiro de 2015

Sonhando

Tudo teria acontecido conforme o planejado se não o tivesse conhecido. Foram a semanas do "grande dia de sua vida" que se encontraram, no condomínio onde seus pais ainda moravam, e de alguma forma aquilo mudou totalmente o rumo das coisas. Céus, o casamento já estava marcado a essa altura.
Ele era a pessoa que havia esperado a vida inteira. Aquele com quem queria passar o resto dos seus dias, acordar cedo e sentir seu mau-hálito matinal, mandá-lo escovar os dentes e ter a certeza de que o amava mesmo assim, com o cabelo desgranhado. Era aquela personalidade fantástica, aquele jeito apaixonante, aquele ser por inteiro que precisava ter ao seu lado, e tinha a sensação de que nada no mundo seria o mesmo depois dele. Mas não era esse o jovem com quem dividia uma aliança.
O casamento a essa altura estava pago, para acontecer em questão de dias dali, e pela primeira vez ela se perguntou porquê. Meu Deus, como as coisas alcançaram esse nível? Como ela havia se permitido casar com alguém que não amava, com quem não queria dividir nada - e por contra própria?! Um rapaz respeitável, claro, jovem como ela, bonito, de uma família que ela nem desgostava tanto assim, e que ela nitidamente não amava o suficiente para se entregar "para todo o sempre" como estava prestes a fazer.
Ninguém estava ao seu lado. E agora, olhando a enorme saia de tule do vestido em seu corpo - que ela mal acreditava ter um dia escolhido -, o cabelo preso de forma desgranhada e as bijuterias baratas e infantis que estava usando, ela não sabia o que estava fazendo ali. Seu celular fora confiscado - porque em algum momento sua farsa foi descoberta por seus pais - e ela estava ali, sentada numa espécie de varanda, já dentro do salão, esperando os convidados chegarem. Vivendo novamente cada momento em sua memória, sentindo crescer em seu peito o desespero.
Ela ia se casar. Não amava seu noivo. E o homem de sua vida sequer tinha sido convidado.
Mexeu em seu rabo de cavalo torto, nitidamente mau-humorada, deu respostas mal-educadas a seus familiares, odiou seu vestido, olhou novamente para os anéis de acrílico ridículos que estava usando. Acabaria logo, não é? Não havia mais nada a se fazer a essa altura. Passou pela porta para a parte mais interna e extensa do salão e viu as cadeiras ainda em cima das mesas, os convidados - de forma bizarra - arrumando o ambiente. Aquilo era ridículo. Tudo era ridículo - o cenário, a situação, o casamento que ela estava pagando praticamente sozinha, para ser consumado com um homem que ela sequer amava de verdade.
Olhou para sua mãe. Ela respondia mensagens em seu celular, e teve um glimpse de verdade, como se entrasse num banho de água fria. Sua mãe a olhou. A mulher que a amava mais do que tudo no mundo, que a entenderia melhor do que ninguém, e que com certeza era capaz de ver o que se passava na mente de sua filha, dada a expressão que tomou seu rosto. Mas que durou meio segundo. Sua filha. Aquela que criara e amara por toda uma vida, a noiva mais absurdamente mal-arrumada de todos os tempos, ali, prestes a entrar num salão bagunçado, a espera de seu noivo egocêntrico e sua família igualmente egocêntrica. Sua filha, que estava prestes a destruir os sonhos que ela mesma criara, baseada nos romances que lera durante a vida toda. Que compartilhou com ela. A filha que ela ensinou a amar.
E foi nesse momento que ela sentiu o amor a envolver, ali mesmo, entre os familiares cujas falas se cruzavam umas com as outras, quando sua mãe lhe sorriu e estendeu o celular. Quando ela lhe deu permissão para fazer exatamente aquilo que desejava, que ansiava, que precisava. Quando ela leu em seu olhar o "vai, filha. Vai ser feliz".
E ela foi.
Não viu ao certo quando o vestido ridículo virou a calça jeans e a camiseta azul marinho, nem quando chegou ali no prédio velho e mal localizado onde sabia que ele morava. Olhava o celular e a conversa entre sua mãe e o irmão mais velho dele, e o "você sabe que ela não pode" que ela não havia terminado de escrever. Não se importou em encontrar o irmão conversando com as colegas da faculdade - ou eram do trabalho? - conversando na porta, e entrou no apartamento como se já pertencesse àquele lugar. Escondeu-se na cozinha, longe das janelas, chorando compulsivamente enquanto o ouvia despedir-se do pequeno grupo de meninas.
Ele não estava em casa, aquele que queria ver. Mas pouco importava. Seu irmão perguntava a ela o que estava fazendo ali, e foi preciso conter os soluços para explicar, enquanto ele corria para encontrá-lo. Céus.
Ela acabara de fugir do próprio casamento e já havia mobilizado as pessoas em prol de sua causa. Sentou-se na mesa da cozinha - ridiculamente pequena -, encostada na geladeira - que era a única coisa que a mantinha escondida. Olhou as paredes azuis e a cortina de banheiro que separava o cômodo do corredor. Estava louca. Estava chorando feito louca. Estava fazendo uma loucura. Estava se escondendo atrás de uma porra de geladeira, fugindo de um casamento que ela mesma havia pedido, organizado e pagado, e dependendo do irmão mais velho do cara que ela acreditava ser o homem de sua vida. E ia depender mais tarde do irmão mais novo dele, que estava se preparando para sair de casa quando a encontrou ali e sentou-se ao seu lado.
Era agora uma sem nome, uma indigente, uma fugitiva. Mas não se importava mais. Agora, nesse enredo louco e pouco controlado - totalmente oposto à vida que levava até então -, estava seguindo seu coração e perseguindo a felicidade que achava merecer, e iria agarrar-se a essa possibilidade com todas as forças, por mais louco que parecesse.

----------
Baseado no sonho que acabei de ter, e que partiu e colou meu coração enquanto eu dormia.

11 de janeiro de 2015

Reflexões em dias de chuva

Se eu conseguisse controlar essas coisas todas, que eu penso e sinto, a própria vida seria mais fácil, concluí. Sentada em minha poltrona, do alto de minha janela eu podia ver as pessoas, que andavam de um lado para o outro sem parecer se importar com a chuva que caía pesadamente sobre suas cabeças, molhando as solas de seus sapatos. Da minha janela, eu via a cidade como se fosse um outro mundo, algo totalmente fora do meu alcance. A fumaça que saía da minha caneca nada tinha a ver com a fumaça que saía dos carros ao cruzar as ruas; as gotas que caíam dos meus cabelos - ainda úmidos do banho que havia tomado a pouco - em nada pareciam as gotas da chuva que molhava minha janela; essa breve melancolia que eu sentia sequer se comparava ao tédio da grande cidade e das pessoas que a ocupavam.
Quando eu via o mundo da minha janela, eu o via por um outro ponto de vista. Não sentia qualquer identificação com aquelas formiguinhas, tão centradas, capazes de andar de um lado para o outro ignorando a chuva em suas cabeças e seus sapatos molhados. Obviamente, eu sabia que era uma delas na maior parte do tempo - eu não era uma hipócrita, apesar de tudo. Essa ideia, de fato, me incomodava. Existia, na cidade, alguém que, do alto de sua janela, me observava e me via como parte de um mundo estranho, ao qual ele não pertencia?
Foi então que concluí: o que me incomodava não era o mundo estranho - ou as formiguinhas, ou a chuva, ou tudo aquilo que fazia parte dele. O que me incomodava era o paradoxo: fazer parte dele e abominá-lo, tudo com a mesma intensidade.

--------------------------------------

Escrito em algum momento ao fim de 2012...