18 de junho de 2014

Liberdade

Olhava-o deitado no chão, numa posição nitidamente desconfortável, murmurando algo incompreensível. Delirava sob o efeito de remédios - que não deveria ter tomado, mas era capaz de qualquer coisa em nome de sua fantasia de auto-destruição. Sentada em sua cadeira, num canto escuro do quarto, ela observava-o sem silêncio, dia a dia, semana a semana, mês a mês. Já não contava mais o tempo, pois ele se arrastava de forma duvidosa. Temia que, se o contasse, saberia com qual frequência sua sanidade a abandonava.
Os olhos inexpressivos pareciam fitar algum ponto morto do assoalho, tal qual uma marionete sem cordas. Seria facilmente confundida com uma, não fosse o leve, quase imperceptível movimento de seu peito ao respirar. De súbito, ouviu um ruído, e sua cabeça voltou-se lentamente para o corpo estirado no assoalho. Ele murmurava algo sobre estar em seu limite, ou algo sobre morte, mas os olhos voltaram-se rapidamente para algum outro ponto qualquer do cômodo. Ouviu o som de algum pássaro, e voltou-se para a grande janela, observando o céu estrelado. Não precisou procurar muito pelo animal, pousado no galho de uma árvore, como se observasse o luar. Os olhos, até então inertes, brilharam.
Queria ser livre como ele. Queria voar entre as nuvens, sentir o vento no rosto e, acima de tudo, viver. Sentir a grama sobre os pés, sentir o perfume das flores, sentir o sabor a água límpida do rio em sua língua. Queria ser livre. Queria sentir a vida pulsando em suas veias mais uma vez.
Como se repentinamente possuída por uma alma, levantou-se da cadeira. As pernas moviam-se de forma lenta, mas sem tropeços. Caminhou vagarosamente, a pequenos passos, até a parede à sua frente, pousando as mãos frias sobre a vidraçaria - os olhos fixos no pássaro. Sem que se desse conta, os dedos finos deslizaram pela madeira escura e abriram o trinco, permitindo que o ar da noite entrasse numa doce brisa. Houveram ruídos de um outro corpo que se levantava, mas estes não foram capazes de alcançar-lhe os ouvidos. Ela debruçou-se sob o parapeito e, envolta da magia do luar, pôs-se de pé sobre o mesmo. Ouviu o animal cantar novamente.
Uma voz fez-se ouvir-se atrás de si, e voltou-se rapidamente - num relâmpago de realidade - para o homem ali, de pé, observando-a. Num único segundo pôde ver o homem, o quarto, a decoração rústica, as noites insones sobre o travesseiro, as lágrimas sobre o assoalho escuro, a jaula da qual podia ver a vida perdendo-se ao lado de fora. O corpo virou-se, e viu, mais uma vez, o céu. O pássaro. O Luar. O cheiro da grama molhada, a carícia do vento na pele, o gosto da liberdade na boca.
Livre, enfim.
Os braços abriram-se e, na batida de de um coração, ela voou. Soberana de sua essência, voou para o mundo, para a vida, para o descanso de suas feridas.
Livre, enfim.

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Maybe tonight, we'll fly so far away
We'll be lost before the dawn
Before the Dawn, Evanescence