27 de fevereiro de 2015

Sonhando

Tudo teria acontecido conforme o planejado se não o tivesse conhecido. Foram a semanas do "grande dia de sua vida" que se encontraram, no condomínio onde seus pais ainda moravam, e de alguma forma aquilo mudou totalmente o rumo das coisas. Céus, o casamento já estava marcado a essa altura.
Ele era a pessoa que havia esperado a vida inteira. Aquele com quem queria passar o resto dos seus dias, acordar cedo e sentir seu mau-hálito matinal, mandá-lo escovar os dentes e ter a certeza de que o amava mesmo assim, com o cabelo desgranhado. Era aquela personalidade fantástica, aquele jeito apaixonante, aquele ser por inteiro que precisava ter ao seu lado, e tinha a sensação de que nada no mundo seria o mesmo depois dele. Mas não era esse o jovem com quem dividia uma aliança.
O casamento a essa altura estava pago, para acontecer em questão de dias dali, e pela primeira vez ela se perguntou porquê. Meu Deus, como as coisas alcançaram esse nível? Como ela havia se permitido casar com alguém que não amava, com quem não queria dividir nada - e por contra própria?! Um rapaz respeitável, claro, jovem como ela, bonito, de uma família que ela nem desgostava tanto assim, e que ela nitidamente não amava o suficiente para se entregar "para todo o sempre" como estava prestes a fazer.
Ninguém estava ao seu lado. E agora, olhando a enorme saia de tule do vestido em seu corpo - que ela mal acreditava ter um dia escolhido -, o cabelo preso de forma desgranhada e as bijuterias baratas e infantis que estava usando, ela não sabia o que estava fazendo ali. Seu celular fora confiscado - porque em algum momento sua farsa foi descoberta por seus pais - e ela estava ali, sentada numa espécie de varanda, já dentro do salão, esperando os convidados chegarem. Vivendo novamente cada momento em sua memória, sentindo crescer em seu peito o desespero.
Ela ia se casar. Não amava seu noivo. E o homem de sua vida sequer tinha sido convidado.
Mexeu em seu rabo de cavalo torto, nitidamente mau-humorada, deu respostas mal-educadas a seus familiares, odiou seu vestido, olhou novamente para os anéis de acrílico ridículos que estava usando. Acabaria logo, não é? Não havia mais nada a se fazer a essa altura. Passou pela porta para a parte mais interna e extensa do salão e viu as cadeiras ainda em cima das mesas, os convidados - de forma bizarra - arrumando o ambiente. Aquilo era ridículo. Tudo era ridículo - o cenário, a situação, o casamento que ela estava pagando praticamente sozinha, para ser consumado com um homem que ela sequer amava de verdade.
Olhou para sua mãe. Ela respondia mensagens em seu celular, e teve um glimpse de verdade, como se entrasse num banho de água fria. Sua mãe a olhou. A mulher que a amava mais do que tudo no mundo, que a entenderia melhor do que ninguém, e que com certeza era capaz de ver o que se passava na mente de sua filha, dada a expressão que tomou seu rosto. Mas que durou meio segundo. Sua filha. Aquela que criara e amara por toda uma vida, a noiva mais absurdamente mal-arrumada de todos os tempos, ali, prestes a entrar num salão bagunçado, a espera de seu noivo egocêntrico e sua família igualmente egocêntrica. Sua filha, que estava prestes a destruir os sonhos que ela mesma criara, baseada nos romances que lera durante a vida toda. Que compartilhou com ela. A filha que ela ensinou a amar.
E foi nesse momento que ela sentiu o amor a envolver, ali mesmo, entre os familiares cujas falas se cruzavam umas com as outras, quando sua mãe lhe sorriu e estendeu o celular. Quando ela lhe deu permissão para fazer exatamente aquilo que desejava, que ansiava, que precisava. Quando ela leu em seu olhar o "vai, filha. Vai ser feliz".
E ela foi.
Não viu ao certo quando o vestido ridículo virou a calça jeans e a camiseta azul marinho, nem quando chegou ali no prédio velho e mal localizado onde sabia que ele morava. Olhava o celular e a conversa entre sua mãe e o irmão mais velho dele, e o "você sabe que ela não pode" que ela não havia terminado de escrever. Não se importou em encontrar o irmão conversando com as colegas da faculdade - ou eram do trabalho? - conversando na porta, e entrou no apartamento como se já pertencesse àquele lugar. Escondeu-se na cozinha, longe das janelas, chorando compulsivamente enquanto o ouvia despedir-se do pequeno grupo de meninas.
Ele não estava em casa, aquele que queria ver. Mas pouco importava. Seu irmão perguntava a ela o que estava fazendo ali, e foi preciso conter os soluços para explicar, enquanto ele corria para encontrá-lo. Céus.
Ela acabara de fugir do próprio casamento e já havia mobilizado as pessoas em prol de sua causa. Sentou-se na mesa da cozinha - ridiculamente pequena -, encostada na geladeira - que era a única coisa que a mantinha escondida. Olhou as paredes azuis e a cortina de banheiro que separava o cômodo do corredor. Estava louca. Estava chorando feito louca. Estava fazendo uma loucura. Estava se escondendo atrás de uma porra de geladeira, fugindo de um casamento que ela mesma havia pedido, organizado e pagado, e dependendo do irmão mais velho do cara que ela acreditava ser o homem de sua vida. E ia depender mais tarde do irmão mais novo dele, que estava se preparando para sair de casa quando a encontrou ali e sentou-se ao seu lado.
Era agora uma sem nome, uma indigente, uma fugitiva. Mas não se importava mais. Agora, nesse enredo louco e pouco controlado - totalmente oposto à vida que levava até então -, estava seguindo seu coração e perseguindo a felicidade que achava merecer, e iria agarrar-se a essa possibilidade com todas as forças, por mais louco que parecesse.

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Baseado no sonho que acabei de ter, e que partiu e colou meu coração enquanto eu dormia.