8 de agosto de 2017

De mim não resta nada

Eu olhei pra você por muito tempo. Seus olhos e sorrisos, seus trejeitos e maneirismos, e posso dizer com certa propriedade que te conheço. Eu aprendi a te amar, respeitar e necessitar. Eu aprendi que, antes de mim, havia o mundo. Havia você e todas as coisas.
Foi assim que eu aprendi a ser o que sou. O que você espera, o que você deseja, e te olhando eu sabia exatamente o que fazer. Para cada pergunta, a resposta. Para cada situação, um comportamento. Para cada pessoa, uma eu. Mais do que uma atriz, eu sou uma diretora - eu sei distribuir os papéis para cada história. Se você me ataca, eu sou a vítima. Se você me machuca, eu sofro. Se você vai embora, eu ouço atentamente sua voz distante, e diferencio se devo ir até você ou te deixar partir. Eu sou o que se espera, pois antes de mim, havia o mundo, você e todas as coisas.
Me ensinaste que eu deveria tratar-te como gostaria de ser tratada. Então eu cuidei de você. Eu te dei minha atenção e meu carinho, eu te olhei e ouvi atentamente, eu estive contigo e respeitei teu espaço. Eu preenchi o seu silêncio e te permiti mergulhar nele, te toquei e me abstive quando precisaste. Eu te olho como a coisa mais preciosa que existe no mundo.
Mas talvez, só talvez, eu quisesse ser olhada. Talvez eu quisesse sorrir junto de ti, e não como você. Talvez eu queira descer do palco e ser olhada sem a maquiagem, sem as roupas bonitas, sem os sapatos altos. Talvez eu queira falar baixinho, no tom que me agrada, sem me preocupar com os ouvidos da platéia.
Eu não posso. Pois antes de mim, havia o mundo, você e todas as coisas. Todas as coisas que eu via, e ouvia, e sentia, e que nunca fizeram parte de mim. Todas as coisas sobre as quais eu tenho controle, mas não posse. A maquiagem, as roupas, os sapatos e o palco não me pertencem - eu faço uso deles para que meu personagem possa brilhar. Eu empresto meu corpo, minha voz, minha alma e coração para que ele possa viver nesse mundo, com você e todas as coisas.
Então não tente me encontrar. Não tente olhar por dentro do meu corpo, pois não há nada para ser visto. Não me peça para ser autora de uma história que nunca me pertenceu. Eu olhei pra você por tanto, tanto tempo,  que quando fui apresentada ao espelho, vi a sua imagem. Você não pode cavar o meu corpo e esperar encontrar um tesouro - você vai cavar, e cavar, e cavar, me atravessar por inteiro e nunca vai encontrar o meu núcleo. O magma, a chama, o calor. Eu sou uma superfície de vidro, com uma fina camada de prata e uma bela moldura. Se você tentar me cavar, você me partirá em vários e vários pedaços. Talvez você possa juntá-los novamente e me reconstruir, mas eu nunca serei mais do que isso.
Eu não me vejo no espelho. Eu vejo a sua imagem, olhando pra mim, os os mesmos olhos que eu observei durante todos esses anos. Eu sou o reflexo do mundo, de você e de todas as coisas. Antes de mim, havia uma imagem. Eu sou a cópia.
Eu sou o espelho, e de mim não resta nada além do seu reflexo. O que mais você espera ver quando olha pra mim?

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